Terça-feira, 1 de Janeiro de 2008

CULTURA KARAOKE


Os programas de televisão eram tristes: casamentos de sonho num canal, famílias cantantes noutro, ambos em final de concurso. Este acabou mais cedo do que aquele. As lantejoulas, os vistosos vestidos de Júlia Pinheiro ou Bárbara Guimarães, as jóias da coroa dos dois canais privados, mais artistas de Morangos com açúcar ou o "cantor" Castelo Branco eram os intervenientes masculinos, igualmente tristes no que faziam ou representavam, mais ainda as "personalidades" acompanhantes ou seja o que for que esta designação significa (familiares, amigos, amigos de amigos, gente que conhece alguém que foi convidado, outras pessoas não incluídas nesta classificação). Muita luz e muita música (ou ruído) completavam o cenário [o canal público passava o humor dos Gato Fedorento, um outro registo que aqui não me interessa explorar].

O rapazinho, de modo bastante diligente, resolveu pôr toda a gente cantar karaoke. Introduziu o CD na playstation e escolheu umas músicas portuguesas que toda a gente conhece ou tem alguma memória da música e da letra.

Um crítico poderia dizer que estamos a importar uma moda japonesa, sem qualquer relação com a cultura nacional, e a destruir esta. Eu poderia intervir e começar a comentar que, possivelmente, em andares ao lado, outros rapazinhos diligentes tentariam alternativas aos programas de televisão. Que mais meios (culturais, de entretenimento) havia para passar aquelas horas de marcado simbolismo, a mudança de ano?

Por outro lado, o karaoke era um modo de iniciar os que não conhecem traços da cultura nacional. Numa era audiovisual, aprender a cantar uma música não será no grupo associativo e cultural do bairro, pois ele é inexistente. Ou: a cultura não se passa de geração para geração, pois a cultura está em constante mutação (escrevi cultura sem aspas, mas não tenho a certeza de isso ser correcto) e perdeu-se a cultura tradicional da transmissão oral. Além disso, o karaoke é uma forma de sociabilidade e o conhecimento de uma cultura necessita dessa sociabilidade.


Lembrei-me das leituras: Theodor Adorno e Richard Hoggart, aquele da escola crítica de Frankfurt, este dos estudos culturais de Birmingham. Adorno exacraria a programação da televisão e o karaoke, ponto final. Acho que ele teria razão, mas ficaríamos sem solução, sem reflexão sobre o que está a acontecer. Hoggart, no seu Uses of literacy (em português: As utilizações da cultura, e não A cultura do pobre, com já li), diria que há processo sociais de adaptação para acompanhar a evolução ideológica e tecnológica no campo cultural. A cultura resultante não se identifica com o modo antigo da cultura popular nem com a resolução cultural de elite, mas uma simbiose, em que a criatividade e os laços de sociabilidade se mantêm.

Não gosto do karaoke, mas reconheço a sua validade. E não me esqueço das cenas de karaoke dquele filme de culto de Sofia Coppola (Lost in translation, 2003, com Scarlett Johansson e Bill Murray).

O televisor, o videojogo, o computador e o telemóvel partilham uma coisa em comum: o ecrã. Que já era o elemento essencial no cinema. A cultura moderna passa por lá, como lembram McLuhan e Baudrillard, além de Castells. A multiplicidade de ecrãs pertence ao que Gustavo Cardoso chama de geração multimedia, por oposição aquela que nasceu nos anos 1950 e assistiu ao nascimento da televisão, a geração iniciática. O ecrã desempenha o lugar central na cultura e no conhecimento de todos nós, além de fonte ininterrupta de entretenimento (aqui penso basicamente na televisão e no videojogo).

Mas o ecrã é, para além de memória colectiva pós-moderna (porque fragmentária e constituída por luzes), também esquecimento. As imagens sucedem-se umas às outras com grande velocidade (outra característica da pós-modernidade), não permitindo a sedimentação da informação – a sua interiorização e reflexão. Isso verifica-se quando vamos ao cinema. As imagens que vimos impressiona-nos mas, uma vez na rua, elas vão desaparecendo em termos de impacto. Um novo filme, e a sucessão de mais filmes, fazem-nos esquecer os anteriores. Não há uma espécie de memorizadores, como havia na Grécia pré-escrita (e que aqui dei conta ao evocar o livro de Havelock, A musa aprendeu a escrever; ver aqui
).

O ecrã é um vidro animado por centelhas eléctricas que chegam a ele. É, na realidade, um espelho, um ecrã outro que se projecta sobre nós e nos indica como procedermos. O ecrã-espelho é uma identidade alternativa, mas que procuramos que seja a nossa. Daí, seguirmos a moda, os tiques, as suas formas culturais. Mesmo que não passem de imagens rápidas, efémeras e quase sem conteúdo.


Há, finalmente, a ideia de eco, de fundo. O karaoke é, ao fim e ao cabo, um eco, a vontade de transcendermos a cópia e passarmos a ser o original, numa inversão da realidade. A multiplicidade de cópias - à maneira de Benjamin e da arte na sua reprodutibilidade técnica - surge aqui como o negativo: primeiro a cópia, depois o ensaio do original. Queremos ser originais mesmo que usando as cópias: daí o sucesso dos programas de playback, como Operação Triunfo ou o programa do canal comercial terminado ontem. Em que se investem muitas emoções e esperanças, sempre a pensar na cópia que ultrapassa em qualidade o original e ganha corpo, mas sem o desperdício do Frankestein (escrito por uma mulher buscando a emancipação, Mary Shelley) - é que o objectivo é o início de uma nova, criativa e humana vida, uma actividade em si.

A isto – embora eu precisasse de reflectir com bem mais profundidade – chamo cultura karaoke.

Karaokê ou caraoquê (japonês: カラオケ, formado por 空 kara, "vazia", e オーケストラ ōkesutora, "orquestra"): estabelecimento comercial de entretenimento em que as pessoas podem cantar para o público, acompanhadas por músicos ao vivo ou playback instrumental (retirado da Wikipédia).

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Os programas de televisão eram tristes: casamentos de sonho num canal, famílias cantantes noutro, ambos em final de concurso. Este acabou mais cedo do que aquele. As lantejoulas, os vistosos vestidos de Júlia Pinheiro ou Bárbara Guimarães, as jóias da coroa dos dois canais privados, mais artistas de Morangos com açúcar ou o "cantor" Castelo Branco eram os intervenientes masculinos, igualmente tristes no que faziam ou representavam, mais ainda as "personalidades" acompanhantes ou seja o que for que esta designação significa (familiares, amigos, amigos de amigos, gente que conhece alguém que foi convidado, outras pessoas não incluídas nesta classificação). Muita luz e muita música (ou ruído) completavam o cenário [o canal público passava o humor dos Gato Fedorento, um outro registo que aqui não me interessa explorar].

O rapazinho, de modo bastante diligente, resolveu pôr toda a gente cantar karaoke. Introduziu o CD na playstation e escolheu umas músicas portuguesas que toda a gente conhece ou tem alguma memória da música e da letra.

Um crítico poderia dizer que estamos a importar uma moda japonesa, sem qualquer relação com a cultura nacional, e a destruir esta. Eu poderia intervir e começar a comentar que, possivelmente, em andares ao lado, outros rapazinhos diligentes tentariam alternativas aos programas de televisão. Que mais meios (culturais, de entretenimento) havia para passar aquelas horas de marcado simbolismo, a mudança de ano?

Por outro lado, o karaoke era um modo de iniciar os que não conhecem traços da cultura nacional. Numa era audiovisual, aprender a cantar uma música não será no grupo associativo e cultural do bairro, pois ele é inexistente. Ou: a cultura não se passa de geração para geração, pois a cultura está em constante mutação (escrevi cultura sem aspas, mas não tenho a certeza de isso ser correcto) e perdeu-se a cultura tradicional da transmissão oral. Além disso, o karaoke é uma forma de sociabilidade e o conhecimento de uma cultura necessita dessa sociabilidade.


Lembrei-me das leituras: Theodor Adorno e Richard Hoggart, aquele da escola crítica de Frankfurt, este dos estudos culturais de Birmingham. Adorno exacraria a programação da televisão e o karaoke, ponto final. Acho que ele teria razão, mas ficaríamos sem solução, sem reflexão sobre o que está a acontecer. Hoggart, no seu Uses of literacy (em português: As utilizações da cultura, e não A cultura do pobre, com já li), diria que há processo sociais de adaptação para acompanhar a evolução ideológica e tecnológica no campo cultural. A cultura resultante não se identifica com o modo antigo da cultura popular nem com a resolução cultural de elite, mas uma simbiose, em que a criatividade e os laços de sociabilidade se mantêm.

Não gosto do karaoke, mas reconheço a sua validade. E não me esqueço das cenas de karaoke dquele filme de culto de Sofia Coppola (Lost in translation, 2003, com Scarlett Johansson e Bill Murray).

O televisor, o videojogo, o computador e o telemóvel partilham uma coisa em comum: o ecrã. Que já era o elemento essencial no cinema. A cultura moderna passa por lá, como lembram McLuhan e Baudrillard, além de Castells. A multiplicidade de ecrãs pertence ao que Gustavo Cardoso chama de geração multimedia, por oposição aquela que nasceu nos anos 1950 e assistiu ao nascimento da televisão, a geração iniciática. O ecrã desempenha o lugar central na cultura e no conhecimento de todos nós, além de fonte ininterrupta de entretenimento (aqui penso basicamente na televisão e no videojogo).

Mas o ecrã é, para além de memória colectiva pós-moderna (porque fragmentária e constituída por luzes), também esquecimento. As imagens sucedem-se umas às outras com grande velocidade (outra característica da pós-modernidade), não permitindo a sedimentação da informação – a sua interiorização e reflexão. Isso verifica-se quando vamos ao cinema. As imagens que vimos impressiona-nos mas, uma vez na rua, elas vão desaparecendo em termos de impacto. Um novo filme, e a sucessão de mais filmes, fazem-nos esquecer os anteriores. Não há uma espécie de memorizadores, como havia na Grécia pré-escrita (e que aqui dei conta ao evocar o livro de Havelock, A musa aprendeu a escrever; ver aqui
).

O ecrã é um vidro animado por centelhas eléctricas que chegam a ele. É, na realidade, um espelho, um ecrã outro que se projecta sobre nós e nos indica como procedermos. O ecrã-espelho é uma identidade alternativa, mas que procuramos que seja a nossa. Daí, seguirmos a moda, os tiques, as suas formas culturais. Mesmo que não passem de imagens rápidas, efémeras e quase sem conteúdo.


Há, finalmente, a ideia de eco, de fundo. O karaoke é, ao fim e ao cabo, um eco, a vontade de transcendermos a cópia e passarmos a ser o original, numa inversão da realidade. A multiplicidade de cópias - à maneira de Benjamin e da arte na sua reprodutibilidade técnica - surge aqui como o negativo: primeiro a cópia, depois o ensaio do original. Queremos ser originais mesmo que usando as cópias: daí o sucesso dos programas de playback, como Operação Triunfo ou o programa do canal comercial terminado ontem. Em que se investem muitas emoções e esperanças, sempre a pensar na cópia que ultrapassa em qualidade o original e ganha corpo, mas sem o desperdício do Frankestein (escrito por uma mulher buscando a emancipação, Mary Shelley) - é que o objectivo é o início de uma nova, criativa e humana vida, uma actividade em si.

A isto – embora eu precisasse de reflectir com bem mais profundidade – chamo cultura karaoke.

Karaokê ou caraoquê (japonês: カラオケ, formado por 空 kara, "vazia", e オーケストラ ōkesutora, "orquestra"): estabelecimento comercial de entretenimento em que as pessoas podem cantar para o público, acompanhadas por músicos ao vivo ou playback instrumental (retirado da Wikipédia).

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Os programas de televisão eram tristes: casamentos de sonho num canal, famílias cantantes noutro, ambos em final de concurso. Este acabou mais cedo do que aquele. As lantejoulas, os vistosos vestidos de Júlia Pinheiro ou Bárbara Guimarães, as jóias da coroa dos dois canais privados, mais artistas de Morangos com açúcar ou o "cantor" Castelo Branco eram os intervenientes masculinos, igualmente tristes no que faziam ou representavam, mais ainda as "personalidades" acompanhantes ou seja o que for que esta designação significa (familiares, amigos, amigos de amigos, gente que conhece alguém que foi convidado, outras pessoas não incluídas nesta classificação). Muita luz e muita música (ou ruído) completavam o cenário [o canal público passava o humor dos Gato Fedorento, um outro registo que aqui não me interessa explorar].

O rapazinho, de modo bastante diligente, resolveu pôr toda a gente cantar karaoke. Introduziu o CD na playstation e escolheu umas músicas portuguesas que toda a gente conhece ou tem alguma memória da música e da letra.

Um crítico poderia dizer que estamos a importar uma moda japonesa, sem qualquer relação com a cultura nacional, e a destruir esta. Eu poderia intervir e começar a comentar que, possivelmente, em andares ao lado, outros rapazinhos diligentes tentariam alternativas aos programas de televisão. Que mais meios (culturais, de entretenimento) havia para passar aquelas horas de marcado simbolismo, a mudança de ano?

Por outro lado, o karaoke era um modo de iniciar os que não conhecem traços da cultura nacional. Numa era audiovisual, aprender a cantar uma música não será no grupo associativo e cultural do bairro, pois ele é inexistente. Ou: a cultura não se passa de geração para geração, pois a cultura está em constante mutação (escrevi cultura sem aspas, mas não tenho a certeza de isso ser correcto) e perdeu-se a cultura tradicional da transmissão oral. Além disso, o karaoke é uma forma de sociabilidade e o conhecimento de uma cultura necessita dessa sociabilidade.


Lembrei-me das leituras: Theodor Adorno e Richard Hoggart, aquele da escola crítica de Frankfurt, este dos estudos culturais de Birmingham. Adorno exacraria a programação da televisão e o karaoke, ponto final. Acho que ele teria razão, mas ficaríamos sem solução, sem reflexão sobre o que está a acontecer. Hoggart, no seu Uses of literacy (em português: As utilizações da cultura, e não A cultura do pobre, com já li), diria que há processo sociais de adaptação para acompanhar a evolução ideológica e tecnológica no campo cultural. A cultura resultante não se identifica com o modo antigo da cultura popular nem com a resolução cultural de elite, mas uma simbiose, em que a criatividade e os laços de sociabilidade se mantêm.

Não gosto do karaoke, mas reconheço a sua validade. E não me esqueço das cenas de karaoke dquele filme de culto de Sofia Coppola (Lost in translation, 2003, com Scarlett Johansson e Bill Murray).

O televisor, o videojogo, o computador e o telemóvel partilham uma coisa em comum: o ecrã. Que já era o elemento essencial no cinema. A cultura moderna passa por lá, como lembram McLuhan e Baudrillard, além de Castells. A multiplicidade de ecrãs pertence ao que Gustavo Cardoso chama de geração multimedia, por oposição aquela que nasceu nos anos 1950 e assistiu ao nascimento da televisão, a geração iniciática. O ecrã desempenha o lugar central na cultura e no conhecimento de todos nós, além de fonte ininterrupta de entretenimento (aqui penso basicamente na televisão e no videojogo).

Mas o ecrã é, para além de memória colectiva pós-moderna (porque fragmentária e constituída por luzes), também esquecimento. As imagens sucedem-se umas às outras com grande velocidade (outra característica da pós-modernidade), não permitindo a sedimentação da informação – a sua interiorização e reflexão. Isso verifica-se quando vamos ao cinema. As imagens que vimos impressiona-nos mas, uma vez na rua, elas vão desaparecendo em termos de impacto. Um novo filme, e a sucessão de mais filmes, fazem-nos esquecer os anteriores. Não há uma espécie de memorizadores, como havia na Grécia pré-escrita (e que aqui dei conta ao evocar o livro de Havelock, A musa aprendeu a escrever; ver aqui
).

O ecrã é um vidro animado por centelhas eléctricas que chegam a ele. É, na realidade, um espelho, um ecrã outro que se projecta sobre nós e nos indica como procedermos. O ecrã-espelho é uma identidade alternativa, mas que procuramos que seja a nossa. Daí, seguirmos a moda, os tiques, as suas formas culturais. Mesmo que não passem de imagens rápidas, efémeras e quase sem conteúdo.


Há, finalmente, a ideia de eco, de fundo. O karaoke é, ao fim e ao cabo, um eco, a vontade de transcendermos a cópia e passarmos a ser o original, numa inversão da realidade. A multiplicidade de cópias - à maneira de Benjamin e da arte na sua reprodutibilidade técnica - surge aqui como o negativo: primeiro a cópia, depois o ensaio do original. Queremos ser originais mesmo que usando as cópias: daí o sucesso dos programas de playback, como Operação Triunfo ou o programa do canal comercial terminado ontem. Em que se investem muitas emoções e esperanças, sempre a pensar na cópia que ultrapassa em qualidade o original e ganha corpo, mas sem o desperdício do Frankestein (escrito por uma mulher buscando a emancipação, Mary Shelley) - é que o objectivo é o início de uma nova, criativa e humana vida, uma actividade em si.

A isto – embora eu precisasse de reflectir com bem mais profundidade – chamo cultura karaoke.

Karaokê ou caraoquê (japonês: カラオケ, formado por 空 kara, "vazia", e オーケストラ ōkesutora, "orquestra"): estabelecimento comercial de entretenimento em que as pessoas podem cantar para o público, acompanhadas por músicos ao vivo ou playback instrumental (retirado da Wikipédia).

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Os programas de televisão eram tristes: casamentos de sonho num canal, famílias cantantes noutro, ambos em final de concurso. Este acabou mais cedo do que aquele. As lantejoulas, os vistosos vestidos de Júlia Pinheiro ou Bárbara Guimarães, as jóias da coroa dos dois canais privados, mais artistas de Morangos com açúcar ou o "cantor" Castelo Branco eram os intervenientes masculinos, igualmente tristes no que faziam ou representavam, mais ainda as "personalidades" acompanhantes ou seja o que for que esta designação significa (familiares, amigos, amigos de amigos, gente que conhece alguém que foi convidado, outras pessoas não incluídas nesta classificação). Muita luz e muita música (ou ruído) completavam o cenário [o canal público passava o humor dos Gato Fedorento, um outro registo que aqui não me interessa explorar].

O rapazinho, de modo bastante diligente, resolveu pôr toda a gente cantar karaoke. Introduziu o CD na playstation e escolheu umas músicas portuguesas que toda a gente conhece ou tem alguma memória da música e da letra.

Um crítico poderia dizer que estamos a importar uma moda japonesa, sem qualquer relação com a cultura nacional, e a destruir esta. Eu poderia intervir e começar a comentar que, possivelmente, em andares ao lado, outros rapazinhos diligentes tentariam alternativas aos programas de televisão. Que mais meios (culturais, de entretenimento) havia para passar aquelas horas de marcado simbolismo, a mudança de ano?

Por outro lado, o karaoke era um modo de iniciar os que não conhecem traços da cultura nacional. Numa era audiovisual, aprender a cantar uma música não será no grupo associativo e cultural do bairro, pois ele é inexistente. Ou: a cultura não se passa de geração para geração, pois a cultura está em constante mutação (escrevi cultura sem aspas, mas não tenho a certeza de isso ser correcto) e perdeu-se a cultura tradicional da transmissão oral. Além disso, o karaoke é uma forma de sociabilidade e o conhecimento de uma cultura necessita dessa sociabilidade.


Lembrei-me das leituras: Theodor Adorno e Richard Hoggart, aquele da escola crítica de Frankfurt, este dos estudos culturais de Birmingham. Adorno exacraria a programação da televisão e o karaoke, ponto final. Acho que ele teria razão, mas ficaríamos sem solução, sem reflexão sobre o que está a acontecer. Hoggart, no seu Uses of literacy (em português: As utilizações da cultura, e não A cultura do pobre, com já li), diria que há processo sociais de adaptação para acompanhar a evolução ideológica e tecnológica no campo cultural. A cultura resultante não se identifica com o modo antigo da cultura popular nem com a resolução cultural de elite, mas uma simbiose, em que a criatividade e os laços de sociabilidade se mantêm.

Não gosto do karaoke, mas reconheço a sua validade. E não me esqueço das cenas de karaoke dquele filme de culto de Sofia Coppola (Lost in translation, 2003, com Scarlett Johansson e Bill Murray).

O televisor, o videojogo, o computador e o telemóvel partilham uma coisa em comum: o ecrã. Que já era o elemento essencial no cinema. A cultura moderna passa por lá, como lembram McLuhan e Baudrillard, além de Castells. A multiplicidade de ecrãs pertence ao que Gustavo Cardoso chama de geração multimedia, por oposição aquela que nasceu nos anos 1950 e assistiu ao nascimento da televisão, a geração iniciática. O ecrã desempenha o lugar central na cultura e no conhecimento de todos nós, além de fonte ininterrupta de entretenimento (aqui penso basicamente na televisão e no videojogo).

Mas o ecrã é, para além de memória colectiva pós-moderna (porque fragmentária e constituída por luzes), também esquecimento. As imagens sucedem-se umas às outras com grande velocidade (outra característica da pós-modernidade), não permitindo a sedimentação da informação – a sua interiorização e reflexão. Isso verifica-se quando vamos ao cinema. As imagens que vimos impressiona-nos mas, uma vez na rua, elas vão desaparecendo em termos de impacto. Um novo filme, e a sucessão de mais filmes, fazem-nos esquecer os anteriores. Não há uma espécie de memorizadores, como havia na Grécia pré-escrita (e que aqui dei conta ao evocar o livro de Havelock, A musa aprendeu a escrever; ver aqui
).

O ecrã é um vidro animado por centelhas eléctricas que chegam a ele. É, na realidade, um espelho, um ecrã outro que se projecta sobre nós e nos indica como procedermos. O ecrã-espelho é uma identidade alternativa, mas que procuramos que seja a nossa. Daí, seguirmos a moda, os tiques, as suas formas culturais. Mesmo que não passem de imagens rápidas, efémeras e quase sem conteúdo.


Há, finalmente, a ideia de eco, de fundo. O karaoke é, ao fim e ao cabo, um eco, a vontade de transcendermos a cópia e passarmos a ser o original, numa inversão da realidade. A multiplicidade de cópias - à maneira de Benjamin e da arte na sua reprodutibilidade técnica - surge aqui como o negativo: primeiro a cópia, depois o ensaio do original. Queremos ser originais mesmo que usando as cópias: daí o sucesso dos programas de playback, como Operação Triunfo ou o programa do canal comercial terminado ontem. Em que se investem muitas emoções e esperanças, sempre a pensar na cópia que ultrapassa em qualidade o original e ganha corpo, mas sem o desperdício do Frankestein (escrito por uma mulher buscando a emancipação, Mary Shelley) - é que o objectivo é o início de uma nova, criativa e humana vida, uma actividade em si.

A isto – embora eu precisasse de reflectir com bem mais profundidade – chamo cultura karaoke.

Karaokê ou caraoquê (japonês: カラオケ, formado por 空 kara, "vazia", e オーケストラ ōkesutora, "orquestra"): estabelecimento comercial de entretenimento em que as pessoas podem cantar para o público, acompanhadas por músicos ao vivo ou playback instrumental (retirado da Wikipédia).

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Os programas de televisão eram tristes: casamentos de sonho num canal, famílias cantantes noutro, ambos em final de concurso. Este acabou mais cedo do que aquele. As lantejoulas, os vistosos vestidos de Júlia Pinheiro ou Bárbara Guimarães, as jóias da coroa dos dois canais privados, mais artistas de Morangos com açúcar ou o "cantor" Castelo Branco eram os intervenientes masculinos, igualmente tristes no que faziam ou representavam, mais ainda as "personalidades" acompanhantes ou seja o que for que esta designação significa (familiares, amigos, amigos de amigos, gente que conhece alguém que foi convidado, outras pessoas não incluídas nesta classificação). Muita luz e muita música (ou ruído) completavam o cenário [o canal público passava o humor dos Gato Fedorento, um outro registo que aqui não me interessa explorar].

O rapazinho, de modo bastante diligente, resolveu pôr toda a gente cantar karaoke. Introduziu o CD na playstation e escolheu umas músicas portuguesas que toda a gente conhece ou tem alguma memória da música e da letra.

Um crítico poderia dizer que estamos a importar uma moda japonesa, sem qualquer relação com a cultura nacional, e a destruir esta. Eu poderia intervir e começar a comentar que, possivelmente, em andares ao lado, outros rapazinhos diligentes tentariam alternativas aos programas de televisão. Que mais meios (culturais, de entretenimento) havia para passar aquelas horas de marcado simbolismo, a mudança de ano?

Por outro lado, o karaoke era um modo de iniciar os que não conhecem traços da cultura nacional. Numa era audiovisual, aprender a cantar uma música não será no grupo associativo e cultural do bairro, pois ele é inexistente. Ou: a cultura não se passa de geração para geração, pois a cultura está em constante mutação (escrevi cultura sem aspas, mas não tenho a certeza de isso ser correcto) e perdeu-se a cultura tradicional da transmissão oral. Além disso, o karaoke é uma forma de sociabilidade e o conhecimento de uma cultura necessita dessa sociabilidade.


Lembrei-me das leituras: Theodor Adorno e Richard Hoggart, aquele da escola crítica de Frankfurt, este dos estudos culturais de Birmingham. Adorno exacraria a programação da televisão e o karaoke, ponto final. Acho que ele teria razão, mas ficaríamos sem solução, sem reflexão sobre o que está a acontecer. Hoggart, no seu Uses of literacy (em português: As utilizações da cultura, e não A cultura do pobre, com já li), diria que há processo sociais de adaptação para acompanhar a evolução ideológica e tecnológica no campo cultural. A cultura resultante não se identifica com o modo antigo da cultura popular nem com a resolução cultural de elite, mas uma simbiose, em que a criatividade e os laços de sociabilidade se mantêm.

Não gosto do karaoke, mas reconheço a sua validade. E não me esqueço das cenas de karaoke dquele filme de culto de Sofia Coppola (Lost in translation, 2003, com Scarlett Johansson e Bill Murray).

O televisor, o videojogo, o computador e o telemóvel partilham uma coisa em comum: o ecrã. Que já era o elemento essencial no cinema. A cultura moderna passa por lá, como lembram McLuhan e Baudrillard, além de Castells. A multiplicidade de ecrãs pertence ao que Gustavo Cardoso chama de geração multimedia, por oposição aquela que nasceu nos anos 1950 e assistiu ao nascimento da televisão, a geração iniciática. O ecrã desempenha o lugar central na cultura e no conhecimento de todos nós, além de fonte ininterrupta de entretenimento (aqui penso basicamente na televisão e no videojogo).

Mas o ecrã é, para além de memória colectiva pós-moderna (porque fragmentária e constituída por luzes), também esquecimento. As imagens sucedem-se umas às outras com grande velocidade (outra característica da pós-modernidade), não permitindo a sedimentação da informação – a sua interiorização e reflexão. Isso verifica-se quando vamos ao cinema. As imagens que vimos impressiona-nos mas, uma vez na rua, elas vão desaparecendo em termos de impacto. Um novo filme, e a sucessão de mais filmes, fazem-nos esquecer os anteriores. Não há uma espécie de memorizadores, como havia na Grécia pré-escrita (e que aqui dei conta ao evocar o livro de Havelock, A musa aprendeu a escrever; ver aqui
).

O ecrã é um vidro animado por centelhas eléctricas que chegam a ele. É, na realidade, um espelho, um ecrã outro que se projecta sobre nós e nos indica como procedermos. O ecrã-espelho é uma identidade alternativa, mas que procuramos que seja a nossa. Daí, seguirmos a moda, os tiques, as suas formas culturais. Mesmo que não passem de imagens rápidas, efémeras e quase sem conteúdo.


Há, finalmente, a ideia de eco, de fundo. O karaoke é, ao fim e ao cabo, um eco, a vontade de transcendermos a cópia e passarmos a ser o original, numa inversão da realidade. A multiplicidade de cópias - à maneira de Benjamin e da arte na sua reprodutibilidade técnica - surge aqui como o negativo: primeiro a cópia, depois o ensaio do original. Queremos ser originais mesmo que usando as cópias: daí o sucesso dos programas de playback, como Operação Triunfo ou o programa do canal comercial terminado ontem. Em que se investem muitas emoções e esperanças, sempre a pensar na cópia que ultrapassa em qualidade o original e ganha corpo, mas sem o desperdício do Frankestein (escrito por uma mulher buscando a emancipação, Mary Shelley) - é que o objectivo é o início de uma nova, criativa e humana vida, uma actividade em si.

A isto – embora eu precisasse de reflectir com bem mais profundidade – chamo cultura karaoke.

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