Segunda-feira, 31 de Julho de 2006
Hoje, vou falar do Museu do Fado e da exposição ali patente, sobre a fadista Berta Cardoso (1911-1997).
Foi o irmão dela, Américo dos Santos, guitarrista amador, que a levou para a canção em 1927, tinha ela apenas 16 anos. Estreou-se no “Salão Artístico de Fados”, ao Parque Mayer. A passagem dos anos 1920 para a década seguinte, marcada pela ditadura e pela instauração da censura, assistiu igualmente ao aparecimento de publicações sobre o fado, dando conta das actividades de intérpretes, músicos, autores e compositores, com apontamentos biográficos, e com promoção de edições discográficas recentes e anúncios de espectáculos e digressões pelo país e fora dele.
Berta Cardoso seria capa de uma dessas revistas, logo em Outubro de 1930, a
Guitarra de Portugal. Aí se escreveu que “chegou, cantou e venceu. E venceu sem esforço e sem exageros porque possui todos os requisitos necessários para ser cantadeira e triunfar”, com um “conjunto de dons próprios, que a impuseram sem favoritismos”.
A fadista actuava em situações distintas, que iam do teatro de revista a operetas, dos cafés aos salões de dança. Logo em 1929, aos 18 anos, actuou no teatro Maria Vitória, na revista
Ricócó. Dois anos mais tarde, foi a Madrid gravar para a editora Odeon, acompanhada por Armandinho (Armando Augusto Freire) e Georgino de Sousa. Os seus êxitos “Lés a lés” e “Fado da Azenha” rapidamente se esgotaram.
Em 1932, pertencia ao elenco privativo do “Salão Jansen”, espaço prestigiado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesse mesmo ano, foi ao Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Santos e outras cidades), no elenco da “Companhia Maria das Neves”, protagonizada por Beatriz Costa, e obteve substancial êxito.
A fadista, pioneira na internacionalização da música urbana lisboeta a par de Ercília Costa, voltaria a sair do país no ano seguinte, agora em direcção a África (Angola, Moçambique e Rodésia). O aparecimento de companhias fadistas profissionais, nessa época, facilitava a organização de espectáculos de grande peso.
Se a ligação ao teatro de revista se manteve ao longo dos anos, ela preferiu ser cantadeira, actuando no Café Luso, em 1936, e no Retiro da Severa, em 1937, ao qual pertencia como elemento privativo, isto é, com contrato de actuação. Em 1939, voltava ao Brasil, na companhia de outros nomes famosos do fado, como Alfredo Marceneiro. Antes, gravara actuações no teatro Variedades e no Retiro do Colete Encarnado, que seriam incluídas no filme de António Lopes Ribeiro,
Feitiço do império, estreado em 1940. Nas décadas de 1930 e 1940, Berta Cardoso continuou a gravar, agora para a etiqueta Valentim de Carvalho. E associou-se também a anúncios na imprensa.
Na altura, havia uma discussão em torno do fado e da sua importância social ou não. Luiz Moita publicava palestras sobre o fado, emitidas na Emissora Nacional (
O fado, canção de vencidos, original de 1936), a que respondeu outro autor, Victor Machado, com uma antologia de biografias (
Ídolos do fado, original de 1937). Obviamente, Berta Cardoso estava integrada neste grupo: “uma cantadeira de mérito inconfundível”.
Os anos seguintes continuariam a ser de grandes sucessos, e que passariam pela televisão, já nos finais da década de 1950. Mas a exposição patente no Museu do Fado esclarece melhor os seus passos, com recurso a cartazes, excertos de filmes e sons que ilustram a importância desta mulher no panorama do fado.
Museu do FadoPara além da magnífica exposição permanente, onde se observam a reconstrução de ambientes (sala onde se canta o fado, oficina de construção de guitarras), exposição de violas e guitarras, cartazes e discos, este espaço em Lisboa tem-se dedicado, desde 1998, a exposições temporárias, que desvendam melhor o fenómeno deste tipo de música urbana, hoje despojada do lastro ideológico mantido pelo antigo regime político. Assim, em 1998, decorreu a exposição sobre a imagem do fado na arte portuguesa, enquanto que, em 1999, uma exposição de xailes mostrou a exuberância estética dos adereços das cantadeiras.
No mesmo ano, e em colaboração com o Museu da Música, patenteou-se um conjunto de guitarras portuguesas. O ritmo de exposições manteve-se nos anos seguintes: em 2000, uma exposição de Carlos Paredes (
Estar com Paredes) e um levantamento do fado na caricatura (de 1870 à actualidade); em 2001, Lisboa como voz de fado (1830-1930, incluindo a mítica Severa), de Portugal ao Brasil (rotas do fado no Atlântico, ou a sua internacionalização) e os
Azulejos, o fado e a guitarra portuguesa (com colóquio internacional), além de um
Roteiro de fado de Lisboa. Depois, marcaram a actividade do museu, em 2003, uma exposição comemorando os 40 anos de carreira de Carlos do Carmo, em 2004 uma sobre Amália e em 2005 uma sobre Stuart (
O fado por Stuart Carvalhais).
Neste momento, o espólio do museu ronda as 13 mil peças, indo do repertório do fado a fotografias e jornais, de cartazes e adereços de actuações a troféus, medalhas e discos (78, 45 e 33 rotações por minuto). O Museu teve perto de 13 mil visitantes em 1999, atingindo quase os 20 mil o ano passado.
Em termos de actividades de investigação, catalogação, preservação e divulgação de património, o Museu estabeleceu um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa para levantamento de pautas e acervo de discos (colaboração extensiva ao Museu do Teatro), para haver uma ideia mais precisa das existências físicas do fado. Ao mesmo tempo, procura fazer a edição de partituras e discografia do fado (identificadas 18 mil peças musicais, num arco histórico até 1950). Para este ano ainda, o Museu projecta editar, com prefácio de Rui Vieira Nery, os dois textos anteriormente referidos de Luiz Moita e Victor Machado.
[o texto seguiu de muito perto o catálogo Berta Cardoso, que acompanha a exposição, comissariada por Sara Pereira, que também me concedeu uma entrevista, facilidades de registo de imagens no Museu e autorização de reprodução de imagens do catálogo, e a quem agradeço sinceramente. O espólio de Berta Cardoso foi cedido por Américo Cardoso Bacelar e Ofélia Pereira, que tem o sítio
Berta Cardoso; Ofélia Pereira, que manteve um contacto muito próximo com a fadista ao longo de muitos anos, projecta editar em breve um livro sobre sua vida e obra]
[a primeira parte deste texto passará hoje por volta das 10:00, como última crónica de uma primeira série na
Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém) ]
Hoje, vou falar do Museu do Fado e da exposição ali patente, sobre a fadista Berta Cardoso (1911-1997).
Foi o irmão dela, Américo dos Santos, guitarrista amador, que a levou para a canção em 1927, tinha ela apenas 16 anos. Estreou-se no “Salão Artístico de Fados”, ao Parque Mayer. A passagem dos anos 1920 para a década seguinte, marcada pela ditadura e pela instauração da censura, assistiu igualmente ao aparecimento de publicações sobre o fado, dando conta das actividades de intérpretes, músicos, autores e compositores, com apontamentos biográficos, e com promoção de edições discográficas recentes e anúncios de espectáculos e digressões pelo país e fora dele.
Berta Cardoso seria capa de uma dessas revistas, logo em Outubro de 1930, a
Guitarra de Portugal. Aí se escreveu que “chegou, cantou e venceu. E venceu sem esforço e sem exageros porque possui todos os requisitos necessários para ser cantadeira e triunfar”, com um “conjunto de dons próprios, que a impuseram sem favoritismos”.
A fadista actuava em situações distintas, que iam do teatro de revista a operetas, dos cafés aos salões de dança. Logo em 1929, aos 18 anos, actuou no teatro Maria Vitória, na revista
Ricócó. Dois anos mais tarde, foi a Madrid gravar para a editora Odeon, acompanhada por Armandinho (Armando Augusto Freire) e Georgino de Sousa. Os seus êxitos “Lés a lés” e “Fado da Azenha” rapidamente se esgotaram.
Em 1932, pertencia ao elenco privativo do “Salão Jansen”, espaço prestigiado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesse mesmo ano, foi ao Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Santos e outras cidades), no elenco da “Companhia Maria das Neves”, protagonizada por Beatriz Costa, e obteve substancial êxito.
A fadista, pioneira na internacionalização da música urbana lisboeta a par de Ercília Costa, voltaria a sair do país no ano seguinte, agora em direcção a África (Angola, Moçambique e Rodésia). O aparecimento de companhias fadistas profissionais, nessa época, facilitava a organização de espectáculos de grande peso.
Se a ligação ao teatro de revista se manteve ao longo dos anos, ela preferiu ser cantadeira, actuando no Café Luso, em 1936, e no Retiro da Severa, em 1937, ao qual pertencia como elemento privativo, isto é, com contrato de actuação. Em 1939, voltava ao Brasil, na companhia de outros nomes famosos do fado, como Alfredo Marceneiro. Antes, gravara actuações no teatro Variedades e no Retiro do Colete Encarnado, que seriam incluídas no filme de António Lopes Ribeiro,
Feitiço do império, estreado em 1940. Nas décadas de 1930 e 1940, Berta Cardoso continuou a gravar, agora para a etiqueta Valentim de Carvalho. E associou-se também a anúncios na imprensa.
Na altura, havia uma discussão em torno do fado e da sua importância social ou não. Luiz Moita publicava palestras sobre o fado, emitidas na Emissora Nacional (
O fado, canção de vencidos, original de 1936), a que respondeu outro autor, Victor Machado, com uma antologia de biografias (
Ídolos do fado, original de 1937). Obviamente, Berta Cardoso estava integrada neste grupo: “uma cantadeira de mérito inconfundível”.
Os anos seguintes continuariam a ser de grandes sucessos, e que passariam pela televisão, já nos finais da década de 1950. Mas a exposição patente no Museu do Fado esclarece melhor os seus passos, com recurso a cartazes, excertos de filmes e sons que ilustram a importância desta mulher no panorama do fado.
Museu do FadoPara além da magnífica exposição permanente, onde se observam a reconstrução de ambientes (sala onde se canta o fado, oficina de construção de guitarras), exposição de violas e guitarras, cartazes e discos, este espaço em Lisboa tem-se dedicado, desde 1998, a exposições temporárias, que desvendam melhor o fenómeno deste tipo de música urbana, hoje despojada do lastro ideológico mantido pelo antigo regime político. Assim, em 1998, decorreu a exposição sobre a imagem do fado na arte portuguesa, enquanto que, em 1999, uma exposição de xailes mostrou a exuberância estética dos adereços das cantadeiras.
No mesmo ano, e em colaboração com o Museu da Música, patenteou-se um conjunto de guitarras portuguesas. O ritmo de exposições manteve-se nos anos seguintes: em 2000, uma exposição de Carlos Paredes (
Estar com Paredes) e um levantamento do fado na caricatura (de 1870 à actualidade); em 2001, Lisboa como voz de fado (1830-1930, incluindo a mítica Severa), de Portugal ao Brasil (rotas do fado no Atlântico, ou a sua internacionalização) e os
Azulejos, o fado e a guitarra portuguesa (com colóquio internacional), além de um
Roteiro de fado de Lisboa. Depois, marcaram a actividade do museu, em 2003, uma exposição comemorando os 40 anos de carreira de Carlos do Carmo, em 2004 uma sobre Amália e em 2005 uma sobre Stuart (
O fado por Stuart Carvalhais).
Neste momento, o espólio do museu ronda as 13 mil peças, indo do repertório do fado a fotografias e jornais, de cartazes e adereços de actuações a troféus, medalhas e discos (78, 45 e 33 rotações por minuto). O Museu teve perto de 13 mil visitantes em 1999, atingindo quase os 20 mil o ano passado.
Em termos de actividades de investigação, catalogação, preservação e divulgação de património, o Museu estabeleceu um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa para levantamento de pautas e acervo de discos (colaboração extensiva ao Museu do Teatro), para haver uma ideia mais precisa das existências físicas do fado. Ao mesmo tempo, procura fazer a edição de partituras e discografia do fado (identificadas 18 mil peças musicais, num arco histórico até 1950). Para este ano ainda, o Museu projecta editar, com prefácio de Rui Vieira Nery, os dois textos anteriormente referidos de Luiz Moita e Victor Machado.
[o texto seguiu de muito perto o catálogo Berta Cardoso, que acompanha a exposição, comissariada por Sara Pereira, que também me concedeu uma entrevista, facilidades de registo de imagens no Museu e autorização de reprodução de imagens do catálogo, e a quem agradeço sinceramente. O espólio de Berta Cardoso foi cedido por Américo Cardoso Bacelar e Ofélia Pereira, que tem o sítio
Berta Cardoso; Ofélia Pereira, que manteve um contacto muito próximo com a fadista ao longo de muitos anos, projecta editar em breve um livro sobre sua vida e obra]
[a primeira parte deste texto passará hoje por volta das 10:00, como última crónica de uma primeira série na
Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém) ]
Hoje, vou falar do Museu do Fado e da exposição ali patente, sobre a fadista Berta Cardoso (1911-1997).
Foi o irmão dela, Américo dos Santos, guitarrista amador, que a levou para a canção em 1927, tinha ela apenas 16 anos. Estreou-se no “Salão Artístico de Fados”, ao Parque Mayer. A passagem dos anos 1920 para a década seguinte, marcada pela ditadura e pela instauração da censura, assistiu igualmente ao aparecimento de publicações sobre o fado, dando conta das actividades de intérpretes, músicos, autores e compositores, com apontamentos biográficos, e com promoção de edições discográficas recentes e anúncios de espectáculos e digressões pelo país e fora dele.
Berta Cardoso seria capa de uma dessas revistas, logo em Outubro de 1930, a
Guitarra de Portugal. Aí se escreveu que “chegou, cantou e venceu. E venceu sem esforço e sem exageros porque possui todos os requisitos necessários para ser cantadeira e triunfar”, com um “conjunto de dons próprios, que a impuseram sem favoritismos”.
A fadista actuava em situações distintas, que iam do teatro de revista a operetas, dos cafés aos salões de dança. Logo em 1929, aos 18 anos, actuou no teatro Maria Vitória, na revista
Ricócó. Dois anos mais tarde, foi a Madrid gravar para a editora Odeon, acompanhada por Armandinho (Armando Augusto Freire) e Georgino de Sousa. Os seus êxitos “Lés a lés” e “Fado da Azenha” rapidamente se esgotaram.
Em 1932, pertencia ao elenco privativo do “Salão Jansen”, espaço prestigiado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesse mesmo ano, foi ao Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Santos e outras cidades), no elenco da “Companhia Maria das Neves”, protagonizada por Beatriz Costa, e obteve substancial êxito.
A fadista, pioneira na internacionalização da música urbana lisboeta a par de Ercília Costa, voltaria a sair do país no ano seguinte, agora em direcção a África (Angola, Moçambique e Rodésia). O aparecimento de companhias fadistas profissionais, nessa época, facilitava a organização de espectáculos de grande peso.
Se a ligação ao teatro de revista se manteve ao longo dos anos, ela preferiu ser cantadeira, actuando no Café Luso, em 1936, e no Retiro da Severa, em 1937, ao qual pertencia como elemento privativo, isto é, com contrato de actuação. Em 1939, voltava ao Brasil, na companhia de outros nomes famosos do fado, como Alfredo Marceneiro. Antes, gravara actuações no teatro Variedades e no Retiro do Colete Encarnado, que seriam incluídas no filme de António Lopes Ribeiro,
Feitiço do império, estreado em 1940. Nas décadas de 1930 e 1940, Berta Cardoso continuou a gravar, agora para a etiqueta Valentim de Carvalho. E associou-se também a anúncios na imprensa.
Na altura, havia uma discussão em torno do fado e da sua importância social ou não. Luiz Moita publicava palestras sobre o fado, emitidas na Emissora Nacional (
O fado, canção de vencidos, original de 1936), a que respondeu outro autor, Victor Machado, com uma antologia de biografias (
Ídolos do fado, original de 1937). Obviamente, Berta Cardoso estava integrada neste grupo: “uma cantadeira de mérito inconfundível”.
Os anos seguintes continuariam a ser de grandes sucessos, e que passariam pela televisão, já nos finais da década de 1950. Mas a exposição patente no Museu do Fado esclarece melhor os seus passos, com recurso a cartazes, excertos de filmes e sons que ilustram a importância desta mulher no panorama do fado.
Museu do FadoPara além da magnífica exposição permanente, onde se observam a reconstrução de ambientes (sala onde se canta o fado, oficina de construção de guitarras), exposição de violas e guitarras, cartazes e discos, este espaço em Lisboa tem-se dedicado, desde 1998, a exposições temporárias, que desvendam melhor o fenómeno deste tipo de música urbana, hoje despojada do lastro ideológico mantido pelo antigo regime político. Assim, em 1998, decorreu a exposição sobre a imagem do fado na arte portuguesa, enquanto que, em 1999, uma exposição de xailes mostrou a exuberância estética dos adereços das cantadeiras.
No mesmo ano, e em colaboração com o Museu da Música, patenteou-se um conjunto de guitarras portuguesas. O ritmo de exposições manteve-se nos anos seguintes: em 2000, uma exposição de Carlos Paredes (
Estar com Paredes) e um levantamento do fado na caricatura (de 1870 à actualidade); em 2001, Lisboa como voz de fado (1830-1930, incluindo a mítica Severa), de Portugal ao Brasil (rotas do fado no Atlântico, ou a sua internacionalização) e os
Azulejos, o fado e a guitarra portuguesa (com colóquio internacional), além de um
Roteiro de fado de Lisboa. Depois, marcaram a actividade do museu, em 2003, uma exposição comemorando os 40 anos de carreira de Carlos do Carmo, em 2004 uma sobre Amália e em 2005 uma sobre Stuart (
O fado por Stuart Carvalhais).
Neste momento, o espólio do museu ronda as 13 mil peças, indo do repertório do fado a fotografias e jornais, de cartazes e adereços de actuações a troféus, medalhas e discos (78, 45 e 33 rotações por minuto). O Museu teve perto de 13 mil visitantes em 1999, atingindo quase os 20 mil o ano passado.
Em termos de actividades de investigação, catalogação, preservação e divulgação de património, o Museu estabeleceu um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa para levantamento de pautas e acervo de discos (colaboração extensiva ao Museu do Teatro), para haver uma ideia mais precisa das existências físicas do fado. Ao mesmo tempo, procura fazer a edição de partituras e discografia do fado (identificadas 18 mil peças musicais, num arco histórico até 1950). Para este ano ainda, o Museu projecta editar, com prefácio de Rui Vieira Nery, os dois textos anteriormente referidos de Luiz Moita e Victor Machado.
[o texto seguiu de muito perto o catálogo Berta Cardoso, que acompanha a exposição, comissariada por Sara Pereira, que também me concedeu uma entrevista, facilidades de registo de imagens no Museu e autorização de reprodução de imagens do catálogo, e a quem agradeço sinceramente. O espólio de Berta Cardoso foi cedido por Américo Cardoso Bacelar e Ofélia Pereira, que tem o sítio
Berta Cardoso; Ofélia Pereira, que manteve um contacto muito próximo com a fadista ao longo de muitos anos, projecta editar em breve um livro sobre sua vida e obra]
[a primeira parte deste texto passará hoje por volta das 10:00, como última crónica de uma primeira série na
Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém) ]
Hoje, vou falar do Museu do Fado e da exposição ali patente, sobre a fadista Berta Cardoso (1911-1997).
Foi o irmão dela, Américo dos Santos, guitarrista amador, que a levou para a canção em 1927, tinha ela apenas 16 anos. Estreou-se no “Salão Artístico de Fados”, ao Parque Mayer. A passagem dos anos 1920 para a década seguinte, marcada pela ditadura e pela instauração da censura, assistiu igualmente ao aparecimento de publicações sobre o fado, dando conta das actividades de intérpretes, músicos, autores e compositores, com apontamentos biográficos, e com promoção de edições discográficas recentes e anúncios de espectáculos e digressões pelo país e fora dele.
Berta Cardoso seria capa de uma dessas revistas, logo em Outubro de 1930, a
Guitarra de Portugal. Aí se escreveu que “chegou, cantou e venceu. E venceu sem esforço e sem exageros porque possui todos os requisitos necessários para ser cantadeira e triunfar”, com um “conjunto de dons próprios, que a impuseram sem favoritismos”.
A fadista actuava em situações distintas, que iam do teatro de revista a operetas, dos cafés aos salões de dança. Logo em 1929, aos 18 anos, actuou no teatro Maria Vitória, na revista
Ricócó. Dois anos mais tarde, foi a Madrid gravar para a editora Odeon, acompanhada por Armandinho (Armando Augusto Freire) e Georgino de Sousa. Os seus êxitos “Lés a lés” e “Fado da Azenha” rapidamente se esgotaram.
Em 1932, pertencia ao elenco privativo do “Salão Jansen”, espaço prestigiado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesse mesmo ano, foi ao Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Santos e outras cidades), no elenco da “Companhia Maria das Neves”, protagonizada por Beatriz Costa, e obteve substancial êxito.
A fadista, pioneira na internacionalização da música urbana lisboeta a par de Ercília Costa, voltaria a sair do país no ano seguinte, agora em direcção a África (Angola, Moçambique e Rodésia). O aparecimento de companhias fadistas profissionais, nessa época, facilitava a organização de espectáculos de grande peso.
Se a ligação ao teatro de revista se manteve ao longo dos anos, ela preferiu ser cantadeira, actuando no Café Luso, em 1936, e no Retiro da Severa, em 1937, ao qual pertencia como elemento privativo, isto é, com contrato de actuação. Em 1939, voltava ao Brasil, na companhia de outros nomes famosos do fado, como Alfredo Marceneiro. Antes, gravara actuações no teatro Variedades e no Retiro do Colete Encarnado, que seriam incluídas no filme de António Lopes Ribeiro,
Feitiço do império, estreado em 1940. Nas décadas de 1930 e 1940, Berta Cardoso continuou a gravar, agora para a etiqueta Valentim de Carvalho. E associou-se também a anúncios na imprensa.
Na altura, havia uma discussão em torno do fado e da sua importância social ou não. Luiz Moita publicava palestras sobre o fado, emitidas na Emissora Nacional (
O fado, canção de vencidos, original de 1936), a que respondeu outro autor, Victor Machado, com uma antologia de biografias (
Ídolos do fado, original de 1937). Obviamente, Berta Cardoso estava integrada neste grupo: “uma cantadeira de mérito inconfundível”.
Os anos seguintes continuariam a ser de grandes sucessos, e que passariam pela televisão, já nos finais da década de 1950. Mas a exposição patente no Museu do Fado esclarece melhor os seus passos, com recurso a cartazes, excertos de filmes e sons que ilustram a importância desta mulher no panorama do fado.
Museu do FadoPara além da magnífica exposição permanente, onde se observam a reconstrução de ambientes (sala onde se canta o fado, oficina de construção de guitarras), exposição de violas e guitarras, cartazes e discos, este espaço em Lisboa tem-se dedicado, desde 1998, a exposições temporárias, que desvendam melhor o fenómeno deste tipo de música urbana, hoje despojada do lastro ideológico mantido pelo antigo regime político. Assim, em 1998, decorreu a exposição sobre a imagem do fado na arte portuguesa, enquanto que, em 1999, uma exposição de xailes mostrou a exuberância estética dos adereços das cantadeiras.
No mesmo ano, e em colaboração com o Museu da Música, patenteou-se um conjunto de guitarras portuguesas. O ritmo de exposições manteve-se nos anos seguintes: em 2000, uma exposição de Carlos Paredes (
Estar com Paredes) e um levantamento do fado na caricatura (de 1870 à actualidade); em 2001, Lisboa como voz de fado (1830-1930, incluindo a mítica Severa), de Portugal ao Brasil (rotas do fado no Atlântico, ou a sua internacionalização) e os
Azulejos, o fado e a guitarra portuguesa (com colóquio internacional), além de um
Roteiro de fado de Lisboa. Depois, marcaram a actividade do museu, em 2003, uma exposição comemorando os 40 anos de carreira de Carlos do Carmo, em 2004 uma sobre Amália e em 2005 uma sobre Stuart (
O fado por Stuart Carvalhais).
Neste momento, o espólio do museu ronda as 13 mil peças, indo do repertório do fado a fotografias e jornais, de cartazes e adereços de actuações a troféus, medalhas e discos (78, 45 e 33 rotações por minuto). O Museu teve perto de 13 mil visitantes em 1999, atingindo quase os 20 mil o ano passado.
Em termos de actividades de investigação, catalogação, preservação e divulgação de património, o Museu estabeleceu um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa para levantamento de pautas e acervo de discos (colaboração extensiva ao Museu do Teatro), para haver uma ideia mais precisa das existências físicas do fado. Ao mesmo tempo, procura fazer a edição de partituras e discografia do fado (identificadas 18 mil peças musicais, num arco histórico até 1950). Para este ano ainda, o Museu projecta editar, com prefácio de Rui Vieira Nery, os dois textos anteriormente referidos de Luiz Moita e Victor Machado.
[o texto seguiu de muito perto o catálogo Berta Cardoso, que acompanha a exposição, comissariada por Sara Pereira, que também me concedeu uma entrevista, facilidades de registo de imagens no Museu e autorização de reprodução de imagens do catálogo, e a quem agradeço sinceramente. O espólio de Berta Cardoso foi cedido por Américo Cardoso Bacelar e Ofélia Pereira, que tem o sítio
Berta Cardoso; Ofélia Pereira, que manteve um contacto muito próximo com a fadista ao longo de muitos anos, projecta editar em breve um livro sobre sua vida e obra]
[a primeira parte deste texto passará hoje por volta das 10:00, como última crónica de uma primeira série na
Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém) ]
Hoje, vou falar do Museu do Fado e da exposição ali patente, sobre a fadista Berta Cardoso (1911-1997).
Foi o irmão dela, Américo dos Santos, guitarrista amador, que a levou para a canção em 1927, tinha ela apenas 16 anos. Estreou-se no “Salão Artístico de Fados”, ao Parque Mayer. A passagem dos anos 1920 para a década seguinte, marcada pela ditadura e pela instauração da censura, assistiu igualmente ao aparecimento de publicações sobre o fado, dando conta das actividades de intérpretes, músicos, autores e compositores, com apontamentos biográficos, e com promoção de edições discográficas recentes e anúncios de espectáculos e digressões pelo país e fora dele.
Berta Cardoso seria capa de uma dessas revistas, logo em Outubro de 1930, a
Guitarra de Portugal. Aí se escreveu que “chegou, cantou e venceu. E venceu sem esforço e sem exageros porque possui todos os requisitos necessários para ser cantadeira e triunfar”, com um “conjunto de dons próprios, que a impuseram sem favoritismos”.
A fadista actuava em situações distintas, que iam do teatro de revista a operetas, dos cafés aos salões de dança. Logo em 1929, aos 18 anos, actuou no teatro Maria Vitória, na revista
Ricócó. Dois anos mais tarde, foi a Madrid gravar para a editora Odeon, acompanhada por Armandinho (Armando Augusto Freire) e Georgino de Sousa. Os seus êxitos “Lés a lés” e “Fado da Azenha” rapidamente se esgotaram.
Em 1932, pertencia ao elenco privativo do “Salão Jansen”, espaço prestigiado na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesse mesmo ano, foi ao Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Santos e outras cidades), no elenco da “Companhia Maria das Neves”, protagonizada por Beatriz Costa, e obteve substancial êxito.
A fadista, pioneira na internacionalização da música urbana lisboeta a par de Ercília Costa, voltaria a sair do país no ano seguinte, agora em direcção a África (Angola, Moçambique e Rodésia). O aparecimento de companhias fadistas profissionais, nessa época, facilitava a organização de espectáculos de grande peso.
Se a ligação ao teatro de revista se manteve ao longo dos anos, ela preferiu ser cantadeira, actuando no Café Luso, em 1936, e no Retiro da Severa, em 1937, ao qual pertencia como elemento privativo, isto é, com contrato de actuação. Em 1939, voltava ao Brasil, na companhia de outros nomes famosos do fado, como Alfredo Marceneiro. Antes, gravara actuações no teatro Variedades e no Retiro do Colete Encarnado, que seriam incluídas no filme de António Lopes Ribeiro,
Feitiço do império, estreado em 1940. Nas décadas de 1930 e 1940, Berta Cardoso continuou a gravar, agora para a etiqueta Valentim de Carvalho. E associou-se também a anúncios na imprensa.
Na altura, havia uma discussão em torno do fado e da sua importância social ou não. Luiz Moita publicava palestras sobre o fado, emitidas na Emissora Nacional (
O fado, canção de vencidos, original de 1936), a que respondeu outro autor, Victor Machado, com uma antologia de biografias (
Ídolos do fado, original de 1937). Obviamente, Berta Cardoso estava integrada neste grupo: “uma cantadeira de mérito inconfundível”.
Os anos seguintes continuariam a ser de grandes sucessos, e que passariam pela televisão, já nos finais da década de 1950. Mas a exposição patente no Museu do Fado esclarece melhor os seus passos, com recurso a cartazes, excertos de filmes e sons que ilustram a importância desta mulher no panorama do fado.
Museu do FadoPara além da magnífica exposição permanente, onde se observam a reconstrução de ambientes (sala onde se canta o fado, oficina de construção de guitarras), exposição de violas e guitarras, cartazes e discos, este espaço em Lisboa tem-se dedicado, desde 1998, a exposições temporárias, que desvendam melhor o fenómeno deste tipo de música urbana, hoje despojada do lastro ideológico mantido pelo antigo regime político. Assim, em 1998, decorreu a exposição sobre a imagem do fado na arte portuguesa, enquanto que, em 1999, uma exposição de xailes mostrou a exuberância estética dos adereços das cantadeiras.
No mesmo ano, e em colaboração com o Museu da Música, patenteou-se um conjunto de guitarras portuguesas. O ritmo de exposições manteve-se nos anos seguintes: em 2000, uma exposição de Carlos Paredes (
Estar com Paredes) e um levantamento do fado na caricatura (de 1870 à actualidade); em 2001, Lisboa como voz de fado (1830-1930, incluindo a mítica Severa), de Portugal ao Brasil (rotas do fado no Atlântico, ou a sua internacionalização) e os
Azulejos, o fado e a guitarra portuguesa (com colóquio internacional), além de um
Roteiro de fado de Lisboa. Depois, marcaram a actividade do museu, em 2003, uma exposição comemorando os 40 anos de carreira de Carlos do Carmo, em 2004 uma sobre Amália e em 2005 uma sobre Stuart (
O fado por Stuart Carvalhais).
Neste momento, o espólio do museu ronda as 13 mil peças, indo do repertório do fado a fotografias e jornais, de cartazes e adereços de actuações a troféus, medalhas e discos (78, 45 e 33 rotações por minuto). O Museu teve perto de 13 mil visitantes em 1999, atingindo quase os 20 mil o ano passado.
Em termos de actividades de investigação, catalogação, preservação e divulgação de património, o Museu estabeleceu um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa para levantamento de pautas e acervo de discos (colaboração extensiva ao Museu do Teatro), para haver uma ideia mais precisa das existências físicas do fado. Ao mesmo tempo, procura fazer a edição de partituras e discografia do fado (identificadas 18 mil peças musicais, num arco histórico até 1950). Para este ano ainda, o Museu projecta editar, com prefácio de Rui Vieira Nery, os dois textos anteriormente referidos de Luiz Moita e Victor Machado.
[o texto seguiu de muito perto o catálogo Berta Cardoso, que acompanha a exposição, comissariada por Sara Pereira, que também me concedeu uma entrevista, facilidades de registo de imagens no Museu e autorização de reprodução de imagens do catálogo, e a quem agradeço sinceramente. O espólio de Berta Cardoso foi cedido por Américo Cardoso Bacelar e Ofélia Pereira, que tem o sítio
Berta Cardoso; Ofélia Pereira, que manteve um contacto muito próximo com a fadista ao longo de muitos anos, projecta editar em breve um livro sobre sua vida e obra]
[a primeira parte deste texto passará hoje por volta das 10:00, como última crónica de uma primeira série na
Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém) ]
Domingo, 30 de Julho de 2006
Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.
Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).
E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».
É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.
Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.
Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.
Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.
Ora, os vídeos do You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.
Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.
Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).
E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».
É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.
Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.
Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.
Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.
Ora, os vídeos do You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.
Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.
Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).
E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».
É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.
Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.
Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.
Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.
Ora, os vídeos do You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.
Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.
Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).
E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».
É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.
Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.
Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.
Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.
Ora, os vídeos do You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.
Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.
Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).
E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».
É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.
Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.
Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.
Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.
Ora, os vídeos do You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.